Já de algum tempo tenho ouvido e lido argumentos que dão conta de que o dízimo seria uma prática do Antigo Testamento, da “velha aliança”, do tempo da “lei”, e que tal teria sido abolido pela “graça”, não havendo respaldo no Novo Testamento para o mesmo.
Diante disto, comecei a me perguntar o por que desta rejeição a uma prática tão antiga na vida da igreja cristã. E quando falo antiga, me refiro aos primórdios do cristianismo. Sei que haverá quem objete dizendo que o cristianismo primitivo não tinha tal prática, mas isto não é verdade. Para defender esta tese, os proponentes manipulam exegeticamente dois textos neotestamentários (como procurarei demonstrar mais à frente), a saber, Mateus 23.23 e Lucas 11.42, e selecionam extratos convenientes dos pais da igreja a fim de passar pseudo-erudição aos seus argumentos. Não é proposta deste artigo examinar os pais da igreja, mas prometo um outro artigo mostrando que a prática do dízimo era comum igreja pós-apostólica.
Enquanto pensava sobre a razão desta onda de reação contrária ao dízimo só pude observar duas razões para a mesma. A primeira, diz respeito a cristãos sinceros, que estão cansados com os abusos e exploração financeira que algumas igrejas/seitas praticam (e.g. Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Mundial do Poder de Deus, Renascer em Cristo, e afins), e alguns pregadores, em particular, para manter seus programas televisos megalomaníacos (e.g. Silas Malafaia). Contra estas práticas, irmãos sinceros, tementes a Deus, rejeitaram tais ensinos, mas por lhes faltar preparo exegético, passaram a interpretar os textos bíblicos não à luz da sua mensagem, mas à luz de suas revoltas contra os abusos. Daí, acabaram por jogar fora uma prática tão salutar e saudável da espiritualidade cristã.
A segunda razão para rejeição do ensino do dízimo encontrei nos corações avarentos, que amam o dinheiro e que, em nome da piedade, passaram a criar pseudo-exegeses para acalentar os seus corações pecaminosos, pois dão ao reino de Deus aquilo que é conveniente ao seu bolso. Espero que esta não seja a sua situação, que lê este artigo e que é contra o dízimo.
Pois bem, antes que partam para uma ataque ad hominem, permita-me dizer-lhe que sou pastor. Alguns, a partir de agora, dirão que sou suspeito para falar do assunto, pois advogaria em causa própria. Considero este tipo de argumento muito medíocre, pois o assunto não trata da nossa função, ou cargos ou qualquer outra coisa ligada à posição que ocupamos na igreja, mas de questões hermenêuticas que nos permitam o entendimento correto de passagens bíblicas.
Outra coisa que gostaria de registrar contra o argumento ad hominem é que durante toda a minha vida fui dizimista e defensor desta causa. Porém, nos anos de 2007 e 2008 fiquei sem pastorear por questões pessoais, e mesmo assim, continuei dizimista na igreja onde passei a congregar. Por fim, voltei a pastorear em 2009, e sirvo a Igreja Episcopal Carismática do Brasil, sem receber nenhum tipo de salário (por opção, enquanto foco esforços na implantação da Igreja em Brasília), e continuo dizimista de tudo o que recebo (como tradutor e revisor de livros para editoras evangélicas, como professor de teologia, como autor de livros, etc). Espero que estes pontos sejam suficientes para calar os que tentarem me acusar de defender o dízimo em causa própria.
Tendo estabelecido estas questões, proponho focar minha atenção na suposta análise exegética que encontrei no artigo supra citado no blog dos “bereianos”. O mesmo tomava o texto de Mateus 23.23 para dizer que o mesmo não fundamentava a prática do dízimo no Novo Testamento, mas que falava de uma prática da “antiga aliança”. Segundo o articulista (não lembro o nome, a única coisa que guardei na memória é que se trata de alguém desconhecido no meio teológico), Jesus teria ensinado a prática do dízimo, nesta passagem, porque estava falando com fariseus e, portanto, como uma prática válida para a “antiga aliança” que estava em jogo. Ainda, segundo o articulista, a “antiga aliança” teria acabado com a morte de Jesus, dando início à nova aliança, o tempo da graça.
Confesso que ao ler isto fiquei estarrecido, pois nunca vi tamanha incompetência hermenêutica como neste caso. Os princípios mais básicos de interpretação textual foram jogados no lixo pelo argumento desta pessoa. Foi por isso que decidi postar um comentário, pontuando aquilo que via de errado no argumento e fiquei decepcionado pela censura. Pois bem, vamos aos princípios negligenciados pelo autor.
O primeiro princípio hermenêutico postulado por todos os teólogos conservadores (em oposição aos liberais e as hermenêuticas pós-modernas), é que a mensagem de um texto deve ser encontrada no eixo autor-comunidade primária. Aqui se encontra o primeiro erro daquele articulista, pois ele leu as palavras de Mateus 23.23 sob o eixo das personagens da narrativa-discurso, a saber, Jesus-fariseus. Aplicando o princípio hermenêutico, aqui, o texto deveria ser lido na perspectiva Mateus (autor do Evangelho)-comunidade mateana (a quem ele se dirige). Neste sentido, as palavras devem ser entendidas sob a ótica do autor, Mateus, que querendo das instruções à sua comunidade sob várias questões ligadas à nova vida dos convertidos (Mateus 28.20, onde “ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado” se refere aos ensinamentos contidos no Evangelho do próprio Mateus, como veremos mais adiante), selecionou a cena em que Jesus ensinava aos seus discípulos sobre o que deveriam observar a fim de instruir sua comunidade, que era muito posterior à data da narrativa-discurso.
Permita-me ser mais claro. O articulista a quem critico tomou a narrativa-discurso para afirmar que Jesus havia instruído o dízimo ainda debaixo da “velha aliança”. Posso concordar com ele neste ponto, mas narrativa, em si, foi escrita depois, já debaixo da “nova aliança”. Quando que Mateus escreveu o seu evangelho? O debate acadêmico é grande sobre este ponto. Temos data de 50 à 70 depois de Cristo (há uns liberais que insistem com datas por volta de 90 à 110 depois de Cristo, mas, hoje, estas teses estão em descrédito na pesquisa acadêmica). Seja qual for a data (creio que possamos data em torno de 50 d.C.), todas elas apontam para o fato de que as palavras de Mateus 23.23 foram escritas já no tempo da “nova aliança”, visando instruir a comunidade a que se destina (que chamamos, tecnicamente, de “mateana”) sobre temas judaicos válidos para a igreja cristã, neste caso específico de Mateus 23.23, sobre o dízimo (falaremos mais disto no próximo ponto).
Creio que estas observações, acima, tenham sido suficientes para você, leitor, perceber o erro crasso cometido pelo articulista ao tentar descaracterizar o dízimo como observância da “nova aliança”. E espero ter demonstrado como devemos ler um texto na perspectiva autor-comunidade primária.
O segundo princípio hermenêutico básico diz que um texto deve ser lido à luz do seu contexto e, nunca, à luz de suas frases. Pois bem, este foi o segundo erro cometido pelo articulista. Ele isolou o versículo 23, criou um contexto imaginário de “velha aliança” versus “nova aliança” e desenvolveu uma argumentação falaciosa.
Mas antes de prosseguirmos na refutação, convém esclarecer o que se entende, em hermenêutica textual por “contexto”. Infelizmente, muita gente entende que contexto era o que vinha sendo dito antes, e assim, limitam o contexto às palavras imediatamente anteriores e posteriores. Isto é outro erro crasso, pois o contexto refere-se à todo o discurso que antecede a passagem que se quer analisar e as palavras que a seguem, dando-lhes sentido. Assim, por contexto temos que entender a mensagem do livro como um todo (contexto geral) até o momento da passagem em análise à luz do seu bloco discursivo (contexto específico).
Aplicando este princípio em Mateus, temos que o texto foi elaborado tendo 5 grandes discursos (5.1-7.27, 10.1-42, 13.1-52, 18.1-35 e 24.1-25.46) como sua estrutura fundamental. No fim de cada discurso aparece, em grego, sempre a mesma frase, kai egeneto hote etelesen ho Iesous, que significa, literalmente, “e aconteceu que disse Jessus..., o que indica marcação de discurso no Evangelho de Mateus, como muitos exegetas têm mostrado historicamente. Agora, chama a atenção que em Mateus 28.20 diga que na missão da igreja, “fazei discípulos”, esteja incluído o ensinara “todas as coisas que vos tenho ordenado”. Por que isto chama a atenção? Porque em 26.1, quando termina o quinto bloco discursivo de Mateus, se diz: kai egeneto hote etelesen ho Iesous panta tous logous, que literalmente significa: “e aconteceu que disse Jesus todas estas palavras/instruções”. Diante do exposto, segue que, do ponto de vista estrutural da mensagem do Evangelho, o mesmo deveria ser lido à luz dos 5 blocos discursivos. E do que tratam estes blocos:
5.1-7.27: O cristão e a lei de Deus
10.1-42: O cristão e o compromisso missionário
13.1-52: O cristão e o reino de Deus
18.1-35: O cristão e a vida em comunidade
24.1-25-46: O cristão e o juízo de Deus
Uma série de questões hermenêuticas poderia ser levantada aqui, mas queremos nos ater à passagem de Mateus 23.23. Como se pode ver, a mesma está entre os discursos catequéticos de 18.1-35 e 24.1-25.46, a vida em comunidade e o juízo de Deus. Tem sido observado por vários comentaristas que os blocos narrativos-discursivos que se colocam entre os blocos discursivos de Mateus servem para ilustrar o discurso anterior e preparar o novo discurso. Como exemplo, peguemos o nosso caso específico. O bloco de 18.1-35, que fala da vida em comunidade, fala em cuidar dos pequeninos e perdoar aos que nos ofendem. A primeira narrativa que segue a estas instruções é a questão do divórcio, onde o discurso se aplica em um caso específico. Já a ultima narrativa-discurso do bloco, 23.37-39 fala da oração de lamento e anúncio de juízo de Deus sobre Jerusalém. Então, começa o Sermão Profético (ou Escatológico, como alguns comentaristas prefere chamar). Creio que você tenha percebido a função destes blocos intermediários.
A nossa passagem pertence ao bloco intermediário que aponta para os exemplos da vida em comunidade e o juízo de Deus sobre a mesma. E de uma forma mais especifica, ainda, Mateus 23.23 se insere na narrativa-discurso que tem início no capítulo 23.1. O que caracteriza este bloco? Considerando que o ensinamento de Jesus sobre a comunidade cristã difere, em muito, do modelo farisaico, o que dizer do mesmo? Rejeitá-lo totalmente?
Observe que após identificar a si mesmo como o próprio Messias que os fariseus esperavam (22.41-45), o que lhe dava autoridade suprema naquilo que instruía, Jesus se volta para as multidões e os seus discípulos e lhes ensina que isto não significava desprezar o ensinamento dos fariseus, pois segundo Jesus, “Na cadeira de Moisés sentaram-se os escribas e fariseus”. O que isto significa? Que eles eram intérpretes legítimos da Lei de Deus. Por isso, Jesus continua, “Praticai o que vos ordenarem”, o que se entende por serem eles (os fariseus), legítimos intérpretes. Porém, as multidões e os discípulos não deveriam imitar as suas obras, “pois dizem e não cumprem”. A partir deste momento, Cristo denuncia algumas de suas práticas (v.4-7); em seguida, passa a combater o mal que leva a hipocrisia, a soberba do coração, exortando a se sujeitarem ao Messias (v.8-12). Tendo dito isto, Jesus passa a ilustrar o que dissera sobre os fariseus: que devemos observar o que eles ensinam, mas que não deveríamos imitá-los em suas obras (v.13-35)
São sete ensinos, marcados por ouai, traduzido por “Ai”. Estes “Ai” são extraídos dos oráculos proféticos do Antigo Testamento que visavam anunciar o castigo de Deus sobre comportamentos pecaminosos. É dentro deste eixo “façam o que eles dizem, mas não façam o que eles fazem” e o sinal de castigo pelo comportamento errado que encontramos o “Ai” sobre o dízimo.
O que Jesus ensinou? O texto é muito claro, e o articulista a quem critico entendeu isto: Jesus estava validando o ensino dos fariseus sobre o dízimo, mas estava desautorizando a prática deles, pois davam o dízimo de tudo, mas desconsideravam coisas básicas que deveriam acompanhar a oferta: a justiça, a misericórdia e a lealdade. Os fariseus ensinavam que o dízimo era bíblico, mas entendiam que sua prática era suficiente para alcançar as bênçãos de Deus (algo parecido com o que se vê, hoje, nos discursos de Edir Macedo e companhia de falsos profetas), desprezando as coisas que deveriam acompanhar a prática do dízimo, justiça, misericórdia e lealdade. Após criticar esta atitude, Cristo termina dizendo: “devíeis, porém, fazer estas coisas (justiça, misericórdia e lealdade), sem omitir aquelas (o dízimo do que fora mencionado).
Agora, aplicando o primeiro princípio hermenêutico delineado acima, a quem se destina este bloco? Aos fariseus? Aos discípulos que estavam com Jesus no momento da fala? À multidão? É claro que não. Se o texto só foi escrito depois de 50 d.C., é óbvio que o mesmo visava instruir leitores, muito tempo depois do ocorrido, sobre a questão do dízimo. Assim, ao preservar esta narrativa-discurso de Jesus, Mateus procurava mostrar à igreja cristã que o dízimo não deveria ser desprezado. E que, portanto, era uma prática para os cristãos da “nova aliança” também.
O mesmo exercício hermenêutico que apliquei aqui, pode ser aplicado em Lucas, também. Agora, em Lucas tem um agravante: a comunidade, como a maioria dos estudiosos do Novo Testamento tem demonstrado, era composta de gentios, oriundos de classes sociais baixas (como exemplo, verifique o material narrativo que é peculiar a Lucas, e você verá que se trata de gente pobre ou excluída da sociedade). Assim, este Evangelho estaria ensinando, assim como Mateus, a prática do dízimo a esta comunidade gentílica também.
Outro erro hermenêutico do artigo em questão se observa quando perguntamos: em que momento o texto de Mateus demonstrou debater o tema da “velha aliança” versus “nova aliança”? Um terceiro princípio básico de hermenêutica ensina que a mensagem extraída de uma parte deve ser avaliada à luz do todo. Vale lembrar que no primeiro bloco discursivo, o “Sermão do Monte”, caps.5-7.27, Jesus se coloca na direção contrária a esta antítese, Lei x Graça. Após descrever o caráter do seu discípulo nas bem-aventuranças e falar do impacto deste no mundo (sal e luz), o Senhor mostra que este caráter impactante é vivido somente por meio da observância da Lei de Deus, e não da sua rejeição, “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir” (5.17). Em seguida, ele diz que isto não é apenas a tarefa dele, Jesus, enquanto Messias, mas uma obrigação para os seus discípulos que gozam do seu caráter: “Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus” (5.20). O que é exceder a justiça dos escribas e fariseus? Nas perícopes seguintes, o Senhor exemplifica tomando a Lei e ampliando a sua implicação.
Este procedimento, de tomar a Lei e ampliar as sua implicações para os discípulos, se pode ver em várias outras passagens do Evangelho de Mateus, exemplificando constantemente o que fora dito em 5.20. Então, quando chegamos em 23.23, fica claro que esta dinâmica redacional continua. A Lei ensina a entrega do dízimo. Como o discípulo “excede” a justiça dos escribas e fariseus? Dando além do dízimo? Não. O texto é claro: “devíeis, porém, fazer estas coisas, sem omitir aquelas!” O discípulo “excede” ao observar não somente o dízimo, mas também “a justiça, a misericórdia e a lealdade” (tradução Peregrino, Paulus). Ou seja, à luz de Mateus, esta antítese “velha aliança” e “nova aliança”, enquanto desobrigação da Lei, não existe.
Que conclusão podemos tirar deste artigo infeliz sobre o dízimo no Novo Testamento? Que ele é um desserviço aos que amam a Cristo e sua Igreja, pois lhes priva de uma bênção chamada dízimo, não como algo que se dá a Deus para se auferir benefícios, mas sinal de gratidão por tudo o que ele tem nos dado.
Gostaria de terminar fazendo mais duas ressalvas. Primeira, durante o artigo mencionei a frase “os estudiosos do Novo Testamento”, ou “vários estudiosos”, e frases afins. Às vezes, as pessoas esquecem do cerne do problema e ficam procurando desculpas diante da confrontação de suas ideias. Assim, para que não venham críticas tolas dizendo que mencionei “estudiosos” sem citar nenhum, lembro que este artigo não pretende ser um comunicado acadêmico, mas uma reflexão a partir do que, academicamente, tem se mostrado sobre o Evangelho de Mateus. Para os que desejarem estudar o que disse, recomendo as obras de Carson, Borkhann, Tasker, Hendricksen, Stott, Broadus, Kümel, Gundry, e tantos outros que escreveram sobre o Evangelho de Mateus ou em introduções ao Novo Testamento ou em comentários específicos. Se você é estudante de teologia ou teólogo, saberá que citei autores conservadores e liberais. Fiz isto não porque seja simpatizante da teologia liberal, antes pelo contrário, sou um ferrenho combatente da mesma; o fiz para frisar que minha análise de Mateus encontra respaldo de todos os lados quanto à relação autor-comunidade. Caso queiram uma bibliografia em inglês, ou detalhada destes autores, peço que me enviem um e-mail e responderei.
A segunda ressalva é que admiro o trabalho que os irmãos do blog “bereianos” desenvolvem em defesa do evangelho do Senhor Jesus contra a apostasia geral da Igreja. Porém, não posso aceitar que nossos ressentimentos contra a apostasia acabe nos afastando de verdades bíblicas simplesmente porque outros as estão adulterando.
Que o Senhor da Igreja nos faça caminhar na verdade e nos livre de qualquer distorção da sua santa Palavra.
Pastor Airton Williams
é isso ai um texto sem um contexto é um pretexto para uma heresia!!!! depois nós somos hereges rsrsrsr falou o herege!!
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