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Espiritualidade - “Voltar ao passado é progredir” — Os cristãos celtas e um modelo de espiritualidade
"Voltar ao passado é progredir” — esta expressão, que tem se tornado proverbial, revela algumas vezes profunda verdade: em determinadas situações, por mais estranho que pareça, voltar ao passado significa progresso, não retrocesso. É o caso da vivência da espiritualidade a partir do modelo do cristianismo celta antigo. Diante de tal afirmativa, alguém poderia pensar: “mas o que cristãos do século 21 poderiam aprender com cristãos que viveram em pleno período medieval?” Certamente o cristianismo contemporâneo tem a aprender com o cristianismo celta, entre muitas outras possibilidades, também no que diz respeito a uma vivência da espiritualidade em harmonia com a natureza, entendida como criação de Deus.
Todo Poderoso Criador, que fizeste todas as coisas;
O mundo não pode expressar toda a tua glória,
Ainda que a grama e as árvores possam cantar.
Outro poema escrito no século oitavo, na antiga língua irlandesa, declara:
Somente um tolo não seria capaz de louvar a Deus pelo seu poder,
Quando as pequeninas aves incapazes de pensar
O louvam com seu vôo.1
Outro aspecto admirável da teologia desenvolvida pelos cristãos celtas é a sua concepção da soteriologia, isto é, da doutrina da salvação. Eles criam firmemente em Jesus Cristo, o Filho de Deus, que morreu na cruz para a salvação e libertação de todo aquele que crer. A cruz celta, que era esculpida em pedra, tornou-se uma figura conhecida em praticamente todo o mundo. As características básicas da cruz celta são: ter o braço horizontal tão largo quanto a sua base vertical, e ser circundada por um círculo, que provavelmente representa uma visão unificada das obras da criação e da redenção. Há também o aspecto de que tanto o poste como a trave da cruz celta são marcados por figuras esculpidas. Em muitas dessas cruzes há representações de animais. Desse modo, aqueles cristãos representavam esteticamente sua leitura de Romanos 8.19-23, que afirma a globalidade da obra de Cristo Jesus na cruz. Tal obra tem efeitos salvíficos para o povo de Deus e para o restante da obra das mãos de Deus, suas criaturas não-humanas. Os cristãos celtas demonstravam, dessa maneira, uma sofisticada teologia, holística em sua maneira de encarar a criação e a redenção. Assim, o cristão celta da Idade Média ficaria horrorizado se pudesse viajar no tempo e ver a destruição desenfreada da natureza que acontece em nosso tempo.
Há relatos documentais impressionantes de antigos santos celtas que tinham um relacionamento todo especial com os animais, criaturas não-humanas de Deus. Talvez alguns desses relatos sejam exagerados, mas mesmo assim deixam claro que eles levavam a sério, no sentido literal, a expressão “não fazer mal a uma mosca”. Columbano, por exemplo, chegou a afirmar: “Entenda a criação se desejas conhecer o Criador... pois aqueles que desejam conhecer as grandes profundidades precisam primeiro perceber o mundo natural”. Ian Bradley, professor de teologia prática e história da Igreja na Faculdade de Teologia da Universidade de Saint Andrews, na Escócia, afirma que esses relatos demonstram que os celtas se relacionavam com os animais no mesmo estilo de Jesus. Marcos afirma que Jesus estava com animais selvagens no deserto, mas eles não o feriam (não há como ler Marcos 1.13 e não se lembrar de passagens como Gênesis 2 ou Isaías 11.6-8). Neste sentido, o cristianismo celta antecipa em séculos uma ênfase que só viria ser encontrada em Francisco de Assis, tido em nossos dias como “patrono” do movimento ecológico. Bradley afirma também que há comprovação de que Francisco visitou uma comunidade monástica em Bobbio, na Itália. Essa comunidade (assim como outras nas vizinhanças de Assis) fora fundada pelo próprio Columbano. Bradley defende a teoria de que, nesses mosteiros de origem irlandesa, Francisco aprendeu o amor à natureza, que o tornou tão conhecido.
Portanto, dos cristãos celtas medievais podemos aprender a ver a natureza com espírito de alegria, gratidão e louvor a Deus. Aprendemos com eles a ter uma espiritualidade que não é descolada nem deslocada da criação.
“Voltar ao passado é progredir”; no que diz respeito à prática da espiritualidade centrada na criação, este provérbio é absolutamente verdadeiro e necessário para o nosso tempo.
Nota:
1. Os versos citados e as referências a Bradley foram extraídos do livro The Celtic Way, de Ian Bradley (London: Darton, Longman & Todd, 2003).
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