Ao reformar a vida litúrgica da Igreja, Lutero (como em tantas outras questões) tinha de lutar em duas frentes de combate. Não tinha de combater apenas os abusos romanos mas também o zelo reformador dos entusiastas.
Lutero sustentava que a vida litúrgica da Igreja Romana se deteriorara por causa da negligência na pregação da Palavra, que fora substituída pela missa. Este abuso foi ampliado pelo fato de ser a missa considerada como tendo o efeito de agradar a Deus, ao invés de ser ocasião para comunhão em torno de Palavra e Sacramento.
Lutero sustentava que a vida litúrgica da Igreja Romana se deteriorara por causa da negligência na pregação da Palavra, que fora substituída pela missa. Este abuso foi ampliado pelo fato de ser a missa considerada como tendo o efeito de agradar a Deus, ao invés de ser ocasião para comunhão em torno de Palavra e Sacramento.
Lutero pretendia manter a leitura contínua da Escritura nos cultos diários, mas também acreditava que a Palavra devia ser pregada, isto é, interpretada. "Se a Palavra de Deus não é pregada seria melhor que os homens não cantassem ou lessem ou se reunissem", disse Lutero em Sobre a Organização do Culto numa Congregação (1523). A ceia do Senhor deveria ser recebida cada domingo, ou mesmo em outras ocasiões, havendo os que desejassem recebê-la. Mas a missa privada diária do clero foi abolida.
O debate contemporâneo sobre o conceito de culto de Lutero é, em geral, dominado por seus escritos polêmicos sobre o assunto, suas afirmações contra a missa romana. Mas também devemos ressaltar o fato que a Reforma trouxe consigo o reavivamento dos conceitos de culto do Novo Testamento e da Igreja antiga. Isto se evidencia especialmente nas primeiras publicações de Lutero sobre o assunto. No Sermão Sobre o Santíssimo Sacramento (1519), apresentou a idéia da comunidade como motivo básico para o culto. O culto litúrgico é a ocasião em que a comunidade se reúne, quando ocorre intercâmbio mútuo entre Cristo e a congregação, e dos cristãos entre si. Nossos pecados são transferidos a Cristo, e sua justiça nos é outorgada. De modo semelhante compartilhamos as cargas e preocupações de nossos coirmãos e nos comprometemos a carregar nossa cruz, ao mesmo tempo que recebemos ajuda e apoio através de nossa comunhão na comunidade.
Também se deve notar que, apesar de sua crítica violenta ao conceito sacrificial da missa, Lutero de maneira nenhuma rejeitou completamente a idéia que no culto litúrgico uma parte essencial seja o sacrifício. O erro do conceito sacrificial da missa é que o sacrifício perfeito que Cristo ofereceu uma vez por todas foi transformado em sacrifício continuamente oferecido pelo homem. A doutrina é que na missa o sacerdote oferece o sacrifício em lugar de Cristo. Como resultado, a ceia do Senhor chegou a ser considerada realização humana e foi inserida no contexto da justiça das obras. Isto contradiz inteiramente o sentido da ceia do Senhor. Pois a ceia do Senhor não é dádiva que apresentamos a Deus; é dádiva que Deus nos oferece, a saber, o corpo e o sangue de Cristo. Portanto não é sacrifício no sentido sacramental romano do termo.
Mas ao mesmo tempo a ceia do Senhor - e todo outro culto litúrgico pode ser denominado sacrifício, significando que nos entregamos a nós mesmos a Cristo, apresentando nossos corpos como sacrifícios vivos (cf. Rm 12.1). Além disso, o culto litúrgico é sacrifício de oração e ações de graças dadas como nossa resposta à misericórdia de Deus e seus dons da graça. Também pode ser denominado sacrifício no sentido que Cristo, como nosso intercessor no céu, se oferece a Deus em nosso favor. (Tratado sobre o Novo Testamento, 1520).
Durante a estadia de Lutero no Wartburgo em 1521-22 seus seguidores em Witerberga, sob a liderança de Carlstadt, tentaram purificar radicalmente as cerimonias eclesiásticas e todas as ornamentações litúrgicas. A fundamentação para essa atividade foi fornecida pelos assim chamados espiritualistas ou entusiastas, já mencionados anteriormente. Além de Carlstadt, Tomás Münzer era o mais conhecido dos dirigentes desse grupo. Diziam que a fé e o culto deviam ser puramente espirituais, a ponto de não exigirem qualquer ornamentação exterior. Foi este ponto de vista que se encontrava por detrás de seu inconoclasmo e da rejeição de todas as cerimônias. Tudo o que fosse "carnal" deveria ser negado, e isto incluía coisas externas e materiais em geral.
Na opinião de Lutero, no entanto, o carnal não é externo em si, mas antes o que foi maculado pela carne. De modo semelhante, julgava ser espiritual não o oposto do externo, mas o que está impregnado pelo espírito de Deus. Quando se permite a ação da Palavra de Deus, então cerimônias e imagens também podem ser consagradas à edificação da comunidade. O erro dos entusiastas foi que procuraram alcançar seus objetivos destruindo imagens, enquanto punham de lado e ignoravam a Palavra.
Os sacramentos: em seu livro Sobre o Cativeiro Babilônico da Igreja (1520), Lutero rompeu com o sistema sacramental da Igreja Romana. Dos sete sacramentos tradicionhais, Lutero reteve apenas dois como sendo sacramentos genuínos, o batismo e a ceia do Senhor. (De início Lutero também considerava a penitência como sacramento.) em sua estimativa, apenas estes são sinais instituídos por Deus que acompanham a promessa da graça. O que há de fundamental num sacramento é a palavra da promessa unida ao sinal. Lutero rejeitou a idéia que o sacramento é a palavra da promessa unida ao sinal. Lutero rejeitou a idéia que o sacramento é eficaz por si mesmo (o conceito ex opere operato). O que é eficaz nos sacramentos é a Palavra divina, e não a ação humana como tal. Com isto, toda a base do culto sacramental romano, inclusive sua reserva da hóstia, as missas pelos mortos e outras missas privadas foram postas de lado.
O batismo expressa a participação do crente na morte e ressureição de Cristo. O cristão deve morrer diariamente para o pecado, a fim de que o novo homem possa ressurgir. Os fatores essenciais do batismo são água e a Palavra, usadas em conjunto. Ao mesmo tempo que rejeitou o conceito escolástico (tomista) da existência de um poder inerente na água, Lutero também criticou energicamente os entusiastas, que desprezavam o sinal externo. Não é a água em si que possui tão grande efeito, mas a água unida à Palavra . Mas visto ser o próprio Deus quem instituiu o sinal do sacramento, a ação externa é obra de Deus e não de homem. O batismo celebrado por um pastor indigno também é válido. Nem tampouco depende o efeito do sacramento da presença da fé naquele que é batizado. Os que recebem o batismo sem ter fé não precisam ser batizados novamente quando chegarem a crer. Como resultado disso, Lutero não considerou questão importante se é possível dizer que a criança batizada tem fé. Aceitou a resposta mais tradicional, que a fé dos padrinhos toma o lugar da fé da criança, mas em outras ocasiões expressou a opinião que também temos de pressupor a existência da fé na criança como efeito da Palavra divina. Em oposição aos entusiastas (e anabatistas) que insistiam no batismo de adultos, Lutero aceitou , manteve e justificou o batismo infantil afirmando que a salvação obtida por Cristo também diz respeito às crianças.
Lutero, e a ceia do Senhor. Em seu livro Sobre o Cativeiro Babilônico da Igreja, Lutero atacou a doutrina católica romana da ceia do Senhor nos três pontos seguintes:
(1) a recusa do cálice aos leigos. Isto é contrário à instituição de Cristo e se baseia em certas especulações insustentáveis sobre o que se encontra em cada um dos elementos, a saber, que tanto o corpo como o sangue se encontram tanto no pão como no vinho.
(2) a doutrina da transubstanciação, a idéia que o pão e o vinho são alterados, que perdem sua substância natural. Essa teoria não tem apoio na Escritura. Não há motivo para supor que o pão deixe de ser o que é por natureza, a saber, pão.
(3) O sacrificio da missa, pelo qual a missa é transformada em obra humana e em parte profanada, tornando-se mero negócio (Geschäft). A ceia do Senhor não é feito realizado por homens para conseguirem expiação junto a Deus.
Lutero explicou o significado da ceia do Senhor com base no relato bíblico de sua instituição. É o testemunho de Cristo a seus discípulos, em que seu dom da graça, o perdão dos pecados, é concedido. No batismo os fatores essenciais são a água e a Palavra unida a ela. Na ceia do Senhor, igualmente, os fatores essenciais são o recebimento físico dos elementos e as palavras de promessa associadas: "dado e derramado por vós para a remissão dos pecados". A ceia do Senhor é sacramento apenas por causa da presença da Palavra. Aqui se aplica a afirmação de Santo Agostinho: "Acrescente-se a Palavra ao elemento e se obterá um sacramento" (accedit verbum ad elementum et fit sacramentum). As implicações mágicas da doutrina da transubstanciação são desta maneira evitadas.
Embora Lutero rejeitasse a transubstanciação, manteve a doutrina da presença real no sacramento do altar. O pão e o vinho, pelo poder da Palavra e da instituição divina, são o verdadeiro corpo e sangue de Cristo, dados sob a forma de pão e vinho. em anos anteriores alguns dos nominalistas, entre eles Pedro d'Ally, expressaram idéias que Lutero poderia aceitar (a assim chamada doutrina da consubstanciação). Diziam, por exemplo, que na ceia do Senhor são distribuídos pão e vinho reais, mas que o corpo e o sangue de Cristo também são dados em, com e sob os elementos externos - como se evidencia na interpretação mais simples das palavras da instituição. Como isto acontece é completamente incompreensível à razão. O conceito de Lutero da presença real desenvolveu-se, acima de tudo na controvérsia sacramental da década de 1520. Os adversários de Lutero foram em parte os entusiastas, liderados por Carlstadt, e em parte Zwínglio e seus discípulos Oecolampádio e Bucer.
Em seu escrito Contra os Profetas Celestiais (1525) , Lutero atacou Carlstadt e seu conceito da ceia do Senhor, Posteriormente, Zwinglio entrou na contrvérsia e publicou sua Amica exegesis, que foi dirigida especificamente contra Lutero (1527). Vários tratados menores foram escritos de ambos os lados, e então Lutero, em sua minuciosa exposição: Confissão no tocante à Ceia do Senhor (1528), deu sua resposta final ao ataque dos adversários. No ano seguinte Lutero, Zwínglio e alguns outros teólogos se reuniram em Marburgo e discutiram esta questão, bem como outras. Havia esperança de que se pudesse chegar a um acordo com respeito à ceia do Senhor e que os reformadores alemães e suíços assim pudessem unir-se. Houve concordância em muitos pontos em Marburgo, mas a questão da presença física na ceia do Senhor foi posta de lado intencionalmente, visto os participantes não conseguirem concordar quanto a ela. O sonho de uma "união de todos os protestantes", deste modo, reduziu-se a nada. A assim chamada Concórdia de Witenberga de 1536 serviu de base para uma união externa por breve período de tempo. Nessa declaração dominava o ponto de vista de Lutero que triunfou na Alemanha.
Carlstadt e Zwínglio representavam o conceito espiritualista ou simbólico da ceia do Senhor. Diziam que os elementos externos são apenas símbolos das realidades celestes, puramente espirituais, às quais a fé é dirigida. Não podemos portanto, falar de presença material ou física, mas apenas de ãção simbólica, em cuja celebração a comunhão com o Cristo celestial é o fator decisivo. Zwínglio interpretou o est da fórmula da instituição como significat: "isto significa meu corpo e sangue". Lutero examinou o apoio exegético para esta interpretação, e asseverou que a palavra est deve manter seu sentido direto e simples, mesmo que a razão se ofenda com isto. Assim como a afirmação se encontra na Escritura, indica que o corpo e o sangue de Cristo estão presentes no sacramento não em sentido figurado mas como realidade, em sua essência. Lutero tinha um pouco mais de respeito pela interpretação de Oecolampádio, que dizia que a palavra "corpo" devia ser interpretada figurativamente, e não o est. As palavras da instituição eram, pois, assim interpretadas: "isto é um símbolo do meu corpo" (figura corporis mei). Mas também esta interpretação foi rejeitada por Lutero.
Esta controvérsia não foi mera questiúncula em torno de palavras. Os pontos de vista subjacentes eram diametralmente opostos, de princípio a fim . Zwínglio partia do dualismo básico entre o espiritual e o físico. A fé, dizia, só pode ser dirigida à natureza divina de Cristo. Portanto, não pode ter nada a ver com os elementos terrenos ou com o corpo e o sangue de Cristo. Citava, nesta conexão, as palavras de João 6.63: " A carne para nada aproveita." O fator mais importante na ceia do Senhor, portanto, é a participação da fé nos dons celestiais, não o comer físico. Zwínglio procurou expressar isto em sua interpretação simbólica, como indicado acima. Além disso, dizia serem as palavras "corpo e sangue de Cristo" (neste contexto) uma alloeosis, isto é, uma figura retórica cujo significado é referir-se na realidade à natureza divina o que se diz sobre a natureza humana.
Lutero, por seu turno, combinava de maneira mais íntima possível a Palavra (à qual a fé é dirigida) com os elementos externos que são recebidos na ceia do Senhor. Pertencem jutnos em virtude do poder das palavras da instituição. Como resultado, a Palavra e o comer físico são, tomados juntos, os fatores essenciais da ceia do Senhor. A presença de Cristo não está condicionada pela fé. Mesmo os descrentes que participam da ceia do Senhor recebem os dons sacramentais - não como bênçãos, naturalmente, mas como juízo. É certamente verdade que o perdão dos pecados só vem pela fé, mas o "comer" o corpo e o "beber" o sangue de Cristo não acontecem "espiritualmente", mas de modo físico (oralis, com a boca). Ao mesmo tempo, o corpo e o sangue de Cristo no sacramento não são algo físico mas algo espiritual. Lutero, desta maneira, rompeu com o dualismo filosófico entre espírito e matéria que se achava por detrás da concepção espiritualista.
Em oposição à alloeosis de Zwínglio, Lutero defendeu a genuína communicatio idiomatum. Isto significa que as qualidades das naturezas divina e humana são comunicadas de uma natureza à outra e que permeiam uma à outra em virtude da união pessoal de Cristo. A expressão "corpo e sangue de Cristo" refere-se à humanidade de Cristo. Mas devido à união que existe entre suas naturezas divina e humana, a natureza humana participa das qualidades da natureza divina e deve relacionar-se intimamente com elas. A fé, portanto, dirige-se ao homem Cristo, e recebe seu corpo e sangue na ceia do Senhor, que são ao mesmo tempo, o corpo e o sangue do Filho de Deus. Este receber tem lugar através do comer físico, e não é simplesmente resultado da comunhão da fé na esfera espiritual.
A idéia da comunicação dos atributos também contribui para elucidar melhor a questão da presença real. Lutero procurou explicar esta idéia ( o tanto quanto pode ser explicada) referindo-se à assim chamada doutrina da ubiquidade: Cristo está presente em toda parte como Deus. E sua natureza humana também participa dessa qualidade. Por causa disto, Cristo também pode estar presente como homem no pão e no vinho dados no sacramento do altar. As origens desta doutrina da ubiquidade remontam ao nominalismo, e subsequentemente a teologia luterana retomou a idéia da ubiquidade da natureza humana, especialmente para distinguir seu próprio conceito da ceia do Senhor do conceito da tradição reformada.
Retirado do Livro: História da Teologia
Bengt Häglund - Concórdia editora - Págs.: 202 a 207
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