Utilidade e Propósito da Humilhação
Quando eu houver falado sobre a utilidade e propósito da humilhação, vocês entenderão mais do porquê da necessidade dela para vocês mesmos.
1. Um dos usos da humilhação é ajudar na mortificação da carne, ou do “eu” carnal, e aniquilá-la, visto ser esta o ídolo da alma. A natureza do estado pecaminoso e miserável do homem consiste no fato de haver se afastado de Deus, e de estar entregue a si mesmo, vivendo agora para si mesmo, estudando, amando e satisfazendo a si mesmo, ao seu “eu” natural mais do que a Deus. Um pecador se livrará de muitos pecados exteriores e se libertará de obras exteriores antes que venha a se libertar do seu “eu” carnal, e se livre da fortaleza e poder do pecado. Não há parte da mortificação tão necessária e tão difícil como a autonegação - na verdade, ela virtualmente compreende todo o resto, e se isto for feito, tudo estará feito. Se fosse apenas uma questão dos seus amigos, seus supérfluos, sua casa, suas terras, talvez um coração carnal pudesse abrir mão disso. Mas abrir mão da sua vida, do seu tudo, do seu “eu”, é uma palavra dura para ele, e suficiente para fazê-lo ir embora pesaroso. Assim sendo, aqui aparece a necessidade da humilhação; ela coloca todo o fardo sobre o “eu”, e quebra o coração do velho homem, e faz um homem não tolerar a si mesmo, a quem anteriormente amava sobremaneira.
A humilhação transforma esta torre de Babel em pó, e faz com que nos detestemos até o pó e cinzas. Ela toca fogo na casa, na qual confiávamos e nos deleitávamos, diante dos nossos olhos; e nos faz não apenas ver, mas sentir, que é tempo de nos rendermos. O orgulho é o pecado mestre do ímpio, e é parte da humilhação fazê-lo cair por terra. A auto-satisfação é o propósito de suas vidas, até que a humilhação ajude a mudar o curso do rio; e aí, então, se você pudesse ler os pensamentos deles, veria que eles agora se consideram os mais indignos; e se você pudesse ouvir suas orações e lamentos, você os ouviria clamar por si mesmos como se fossem os seus maiores inimigos.
2. A próxima utilidade da humilhação, e implícita na utilidade anterior, é mortificar aqueles pecados dos quais o “eu” carnal depende e pelos quais é nutrido, e bloquear todas as avenidas e passagens através das quais eles são supridos. O pecado é doce e querido por todos os que não são santificados; mas a humilhação faz com que se tornem amargos e vis.
Assim como as crianças são dissuadidas de brincar com uma colméia de abelhas quando são uma ou duas vezes ferradas por elas, ou de brincar com cães bravios quando são mordidas por eles, assim Deus ensina Seus filhos a saberem o que significa brincar com o pecado, quando são golpeados por ele. Eles distinguirão uma urtiga de arbustos inofensivos quando sentirem o seu ardor. Nós estamos tão acostumados a viver pelos sentidos, que Deus considera necessário que nossa fé tenha a ver com os sentidos para ajudá-la. Quando a consciência acusa, o coração sofre, geme de dor, e sentimos que nenhum expediente ou esforço nos livrará disso, então começamos a nos tornar mais sábios do que antes, e a conhecer o que é realmente o pecado, e o que ele nos causa. Quando aquilo que era o nosso deleite se torna a nossa aflição, e uma aflição pesada demais para suportarmos, isto cura o nosso deleite no pecado. Quando Davi estava encharcando o seu leito com lágrimas, e teve que beber delas, o seu pecado não era mais a mesma coisa para ele, como o foi quando o cometeu. A humilhação retira a pintura desta prostituta que é o pecado e mostra-a em sua deformidade. Ela desmascara o pecado, o qual assumiu uma máscara de virtude, ou de algo irrelevante, ou de uma coisa inofensiva. Ela desmascara Satanás, o qual foi transformado num amigo, ou em um anjo de luz, e revela o seu caráter maligno.
Quão difícil é curar um mundano do amor ao dinheiro! Mas quando Deus coloca tal peso em sua consciência, a ponto de fazê-lo gemer e clamar por socorro, o dinheiro perderá o seu atrativo. Quando ele começa a chorar e gemer por causa das misérias que vêm sobre si, e vê os efeitos da sua riqueza corrupta, e a gangrena do seu ouro e prata começar a comer a sua carne como fogo, e seu ídolo se torna nada menos do que um testemunho contra si, então estará melhor habilitado do que antes para avaliar o pecado. O devasso pensa que tem uma vida feliz quando os lábios da prostituta destilam favos de mel, mas quando ele percebe que o fim dela é amargoso como o absinto, agudo como a espada de dois gumes, que os seus pés descem à morte, e que os seus passos conduzem-na ao inferno[6], e ele jaz em tristeza, lamentando-se da sua loucura, estará então em mais condições de julgar corretamente do que antes estava. O Manassés humilhado em cadeias não é o mesmo que era quando estava no trono; embora a graça tenha contribuído mais para isso do que seus grilhões, estes foram úteis para este fim. A humilhação abre a porta do coração, e lhe diz o que o pecado faz à vida, e introduz a palavra de vida, a qual não havia ainda penetrado além dos ouvidos ou do cérebro.
É um trabalho cansativo falar a homens mortos, os quais perderam os seus sentimentos; especialmente quando se trata de uma doutrina efetiva e prática, a qual devemos lhes comunicar, e que será perdida se não for sentida e praticada. Até que a humilhação opere, nós falamos a homens mortos, ou pelo menos a homens profundamente adormecidos. Quantos sermões eu tenho ouvido que se pensava viriam a transformar os corações dos homens internamente, a fazê-los chorar por causa dos seus pecados, com tristeza e vergonha diante da congregação, levando-os a nunca mais se envolverem com o pecado; e, no entanto, os ouvintes quase que nem foram tocados por eles, mas saíram como vieram, como se não soubessem do que o pregador estava falando, porque os seus corações estavam o tempo todo sonolento dentro deles.
Uma alma humilhada, entretanto, é uma alma despertada. Ela considerará aquilo que é dito; especialmente quando percebe que vem do Senhor, e diz respeito à sua salvação. É um grande encorajamento para nós pregar para um homem que tem ouvidos, vida e sentimentos, que recebe a palavra com apetite, saboreando-a, engolindo a comida que é colocada na sua boca. A vontade é a principal fortaleza do pecado. Se nós pudermos alcançá-la, nós poderemos fazer alguma coisa, mas se ela bloquear o coração, e nós não pudermos chegar mais perto do que o ouvido ou o cérebro, não haverá benefício algum. A humilhação nos abre uma passagem para o coração, a fim de que possamos tomar de assalto o pecado em seu vigor. Eu lhes falo da natureza abominável do pecado, que causou a morte de Cristo, e leva ao inferno, e que é melhor correr para o fogo do que, de maneira propositada, cometer o menor pecado, embora se trate de algo tal que o mundo nem note. Mas, ao lhes falar, se você não for humilhado, pode ouvir tudo isto e superficialmente crer nisso, e dizer que é verdade, mas é a alma humilhada que pode sentir o que lhe está sendo dito. Que luta nós temos com um beberrão, ou com um mundano, ou com qualquer outro pecador frívolo, na tentativa de persuadi-lo a abandonar seus pecados com abominação; e tudo com tão pouco resultado! Às vezes ele deseja abandoná-los, mas é tentado a provar do pecado de novo; e assim fica adiando, porque a palavra não se assenhoreou do seu coração. Mas quando Deus vem sobre a alma como uma tempestade, arrebentará as portas, e como se fossem relâmpagos e trovões na consciência, apodera-se do pecador e o sacode todo em pedaços com o Seu terror e lhe pergunta: O pecado é bom para ti? Uma vida carnal e descuidada é boa? Tu, verme desprezível! Tu, tolo pedaço de barro! Ousas abusar de Mim face a face? Ignoras que Eu estou te olhando? É esta a obra para a qual continuas vivo? Fora com o pecado, sem mais delongas, ou jogarei fora a tua alma e te entregarei aos atormentadores. Isto o desperta da sua demora e procrastinação, faz com que veja que Deus tem boa vontade para com ele, e que, portanto, ele deve ter boa vontade para com Deus.
Se um médico tem um paciente amante da comida que sofre da gota ou de pedra nos rins, ou de qualquer outra doença, e lhe proibir do vinho, bebida forte e outros alimentos que deseja, logo que ele se sentir melhor se aventurará a prová-los, e não se sujeitará às palavras do médico; mas, quando for atacado pela doença e sentir o tormento, então se submeterá às prescrições médicas. A dor o ensinará mais efetivamente do que as palavras poderiam fazê-lo. Quando ele sente o que lhe é doloroso, e que aquilo sempre o faz adoecer, ele se reprimirá mais do que faria por atenção às recomendações médicas.
Assim, quando a humilhação quebrar o seu coração e lhe fizer sentir que está doente de pecado, e encher a sua alma com dores agudas e sofrimentos, então você terá mais desejo de que Deus destrua o pecado em você. Quando o pecado pesar sobre você, a ponto de não lhe permitir levantar os olhos, quando fizer com que vá a Deus com gemidos e lágrimas clamando: Oh, Senhor, tem misericórdia de mim porque sou pecador! Quando você ficar feliz em procurar os ministros para aliviar a sua consciência, encher os ouvidos deles com acusações a si mesmo, e revelar até os pecados mais odiosos e vergonhosos, então você ficará feliz em se desvencilhar dos pecados. Antes disso não adianta lhe falar sobre mortificação e sobre rejeição resoluta dos seus pecados; os preceitos do Evangelho parecerão rigorosos demais para que você se submeta a eles. Mas um coração quebrantado mudaria a sua mente.
Um saudável lavrador diria: “Eu como o que quero”; “os médicos só querem tirar o nosso dinheiro”; “eu nunca seguirei o conselho deles”. Mas quando a enfermidade vier sobre ele, e houver tentado em vão tudo que estava ao seu alcance e a dor não lhe der descanso, e for levado ao médico, então ele fará qualquer coisa, e tomará qualquer remédio que ele lhe der, a fim de que possa ter algum alívio e se recupere.
Assim, quando o seu coração estiver endurecido e não humilhado, estes pregadores e as Escrituras lhes parecerão severos demais. O que vocês desejam realmente são ministros afetados e presunçosos, que preguem o que bem quiserem. Vocês nunca acreditarão que Deus concorda com as coisas duras que os ministros fiéis pregam, nem que Deus condenará vocês pelas coisas às quais dispõem seus corações. Mas quando aqueles pecados se tornarem como que espadas no seu coração, e você começar a sentir aquilo de que os ministros haviam lhe alertado, então a sua reação será outra. Portanto, fora com o pecado! Não há nada tão odioso, tão maligno, tão intolerável. Oh, se você pudesse se livrar dele, custasse o que custasse! Então você teria por seu melhor amigo aquele que lhe pudesse dizer como matar o pecado, e se livrar dele; e aquele que afastasse você desse amigo lhe seria como o próprio Satanás. A humilhação cava tão profundamente que mina o pecado, e a fortaleza do mal; e quando o alicerce está profundamente enraizado, a humilhação o destroçará. Quando os assassinos de Cristo tiveram o seu coração golpeado, eles clamaram por um conselho dos apóstolos. Quando um assassino dos santos é jogado cego por terra, e o Espírito, além disso, humilha a sua alma, então ele é levado a clamar: “Senhor, o que tu queres que eu faça?” Quando um cruel carcereiro que açoita os servos de Cristo é levado por um tremor de terra a um tremor de coração, ele então clamará: “Que devo fazer para que seja salvo?”
Aqui se manifesta o uso das aflições; e mesmo o porquê delas favorecerem tanto a humilhação: os homens são trazidos à razão em momentos de crise. Quando eles jazem num leito de morte, alguém pode falar-lhes, que eles não vão, tão soberbamente, fazer pouco caso do que lhes é dito, ou escarnecer da Palavra do Senhor, como o fizeram na prosperidade. Deus será mais considerado quando Ele pleitear com eles com uma vara na mão. Os açoites são a melhor lógica e o melhor discurso para um tolo. Quando o pecado leva cativa a razão deles pela carne, o argumento que poderá convencê-los deverá ser tal que a carne seja capaz de entender. A carnalidade brutifica o homem de tal modo que, tornando-se brutos, não são mais as razões mais claras que prevalecerão; e se Deus não houvesse mantido no homem corrompido algum resquício de razão, nós pregaríamos aos animais com tanta esperança como pregamos aos homens. Mas as aflições tendem por enfraquecer o inimigo que os cativa; assim como a prosperidade tende a fortalecê-lo. A carne entende a linguagem da vara melhor do que a linguagem da razão e da Palavra de Deus.
Como a parte sensível da nossa humilhação promove a mortificação, assim a humilhação racional e voluntária, que é própria ao santificado, é a parte principal da mortificação. Assim, como você vê, é necessário que sejamos totalmente humilhados, a fim de que o pecado possa ser plenamente aniquilado em nós.
3. Outro uso da humilhação é o de preparar a alma para encontrar mais graça, para a honra de Cristo e para o nosso próprio bem.
(1) Com relação a Cristo, é de se esperar que Ele habite apenas em almas que estejam preparadas para recebê-Lo. Nem a Sua pessoa, nem a Sua obra são tais que possam se coadunar com um coração não humilhado. Até que a humilhação faça um pecador sentir o seu pecado e miséria, não é possível que Cristo, como Cristo, venha a ser bem-vindo ou recebido com a honra que Ele espera. Quem liga para o médico quando não está doente e nem teme a morte? Ele pode passar pela porta de tal homem, e este não o chamará, mas quando a dor e o temor da morte estão sobre si, ele irá atrás, procurará e implorará para que venha. Correria para Cristo, em busca de socorro, aquele que não sente sua própria necessidade ou perigo? Agarrar-se-iam Nele como o único refúgio das suas almas, achegando-se a Ele como sua única esperança, aqueles que não sentem necessidade Dele? Prostar-se-iam aos Seus pés mendigando misericórdia aqueles que passam muito bem sem Ele?
Quando os homens ouvem acerca do pecado e da miséria, e crêem apenas superficialmente, eles podem procurar Cristo e graça com frieza, e sentem tão pouco o valor do segundo, como sentem a importância do primeiro. Mas Cristo não é nunca valorizado e procurado como Cristo, até que a tristeza nos ensine como valorizá-Lo; nem é Ele recebido com a honra devida a um Redentor, até que a humilhação quebre todas as portas; nem um homem pode buscá-Lo de todo o seu coração, se não o fizer com o coração quebrantado.
Também é certo que Cristo não baixará o custo para vir a uma alma. Embora Ele venha para o nosso bem, receberá honra ao fazer isso. Embora Ele venha para curar-nos, e não porque tenha qualquer necessidade de nós, terá que receber as boas vindas devidas a um médico. Ele veio para nos salvar, mas será honrado na nossa salvação. Ele convida a todos para a festa do casamento, e até mesmo compele-os a vir; mas espera que tragam a veste nupcial, e não venham com uma roupa ordinária que desonraria Sua casa. Embora a Sua graça seja livre, Ele não a expõe ao desprezo, mas terá a Sua plenitude e liberdade glorificadas. Embora Ele não venha para redimir a Si mesmo, mas a nós, ainda assim vem para ser glorificado na obra da nossa redenção. A Sua graça não é tão livre a ponto de salvar aqueles que não a valorizam, e não dão graças por ela.
Assim sendo, apesar da fé ser suficiente para aceitar o dom, a fé deve ser uma fé grata, que magnificará o doador, e uma fé humilde que reconheça o Seu valor, e uma fé obediente que responda ao Seu propósito. Assim, a fé que é a condição de nossa justificação é apropriada tanto à honra do doador, como à necessidade do recebedor. E como a razão nos diz que deveria ser, assim confirma a experiência cristã. A alma que é verdadeiramente unida a Cristo e compartilha da Sua natureza, valoriza mais a obra da Sua salvação, onde a honra de Cristo é maior. Ela não consegue sentir prazer na idéia de uma graça tal que venha a desonrar o próprio Senhor da graça. Assim como Cristo é solícito para a salvação da alma, assim Ele faz a alma solícita em receber corretamente Aquele que a salva. Deste modo, foi através do Seu sangue, e não da nossa aceitação do Seu ensino ou governo, que obtivemos o resgate da nossa alma. Mas, por outro lado, Ele está resolvido a não justificar a ninguém através do Seu sangue, exceto sob a condição desta fé, que é um assentimento do coração ao Seu ensino e senhorio. A virtude não está tanto na aplicação ou concessão dos benefícios de Cristo quanto está na Sua obra de adquirir para nós esses benefícios.
Quando Ele veio para nos resgatar, consentiu em ser um sofredor, a dar a Sua face ao golpeador, e a se submeter ao opróbrio. Suportou a cruz, desprezando a vergonha, e sendo injuriado não injuriou, mas orou por Seus perseguidores. Todavia, Ele não virá através da Sua graça salvadora à alma para ser recebido ali com desprezo, porque Ele veio na carne com o propósito de ser humilhado, mas veio no Espírito com o propósito de ser exaltado. Cristo veio na carne para condenar o pecado que reinava na nossa carne, e assim foi feito pecado por nós, isto é, um sacrifício pelo pecado. Mas no Espírito, Ele veio para conquistar a nossa carne e, através da lei do Seu Espírito vivificador, para nos libertar da lei do pecado e da morte[7], a fim de que a justiça da lei se cumprisse em nós, e também para que não fôssemos condenados, nós os que andamos não segundo a carne, mas segundo o Espírito.
O reino de Cristo não era deste mundo, porque, se o fosse, Ele procuraria estabelecê-lo pela força das armas e da luta, que são os meios mundanos. Mas o Seu reino é dentro em nós; é um reino espiritual, e assim, apesar de estar no mundo, Ele foi tratado com desdém, como um tolo, como um pecador, e como um infortunado. Mas dentro em nós Ele deve ser tratado com honra, e reverência, como um Rei e Senhor absoluto. A vez do executor e do poder das trevas foi quando Ele estava em agonia; mas quando Ele vem através da Sua graça salvadora a uma alma, é a vez do Seu triunfo e casamento, e do poder prevalecente da luz celestial. Na cruz, Ele era como um pecador, e tomou o nosso lugar, e suportou o que era a nossa culpa, e não Sua. Mas na alma Ele é o conquistador de pecados, e vem para tomar posse do que é Seu, e para realizar a obra que pertence a Ele na Sua dignidade; e, assim, Ele será ali reconhecido e honrado. Na cruz, Ele estava derrubando o reino de Satanás, e estabelecendo o Seu próprio, apenas de um modo preparatório; mas na alma, Ele faz ambos serem executados imediatamente. Na cruz, o pecado e Satanás se vangloriaram; mas quando Ele penetra a alma, é Ele quem Se vangloria sobre eles, e não cessa até os haver destruído. Na redenção, Ele Se consumiu; mas na conversão, Ele toma posse do que remiu. Em uma palavra, Ele veio ao mundo em carne para ser humilhado, mas Ele vem à alma, através do Seu Espírito, para a Sua merecida exaltação. Assim sendo, embora Ele houvesse suportado ser cuspido na carne, não suportará ser desprezado na alma. Assim como no mundo Ele foi escarnecido com um título de rei, coroado com espinhos, e vestido com tais roupas reais a fim de que fosse feito objeto de opróbrio, assim, quando Seu Espírito entra em uma alma, Ele é ali entronizado com a nossa consideração mais reverente, subjetiva, e profunda. Ele é ali coroado com o nosso mais elevado amor, e gratidão, e adorado com a ternura da nossa obediência e do nosso louvor. A cruz haverá de ser a porção dos Seus inimigos; a coroa e o cetro serão a Sua. E assim como tudo foi preferido em detrimento Dele na terra, até mesmo o próprio Barrabás, assim também todas as coisas haverão de ser subjugadas a Ele na alma santificada, e Ele obterá a primazia diante de todas as coisas.
Este é o propósito da humilhação: preparar o coração para um maior gozo do Senhor, e preparar o caminho diante Dele, e habilitar a alma para ser o templo do Seu Espírito. Uma alma humilhada nunca se desvencilharia Dele usando bois, fazendas, ou casamentos como desculpas. Aquele, porém, que não é humilhado fará muito pouco caso Dele.
(2) Assim como o próprio Cristo será recebido com honra, ou então nem será recebido, assim deve acontecer com a misericórdia e com a graça que Ele oferece. Ele não aplicará o Seu sangue e a Sua justiça àqueles que não lhes dão valor. Ele não perdoará tamanha quantidade de iniqüidades, nem removerá tais montanhas que caem sobre a alma daqueles que não sentem a necessidade de tal misericórdia. Ele não resgatará do poder do mal, da opressão do pecado, dos arrabaldes do inferno e não fará membros de Seu próprio corpo, filhos de Deus e herdeiros dos céus, aqueles que não aprenderam a valorizar estes benefícios, mas são mais voltados para os seus pecados, misérias e frivolidades do mundo. Cristo não despreza Seu sangue, Seu Espírito, Sua aliança, Seu perdão, nem Sua herança celestial e assim Ele não as dará a ninguém que as despreze, até que Ele os ensine melhor a conhecer o Seu valor. Você pensa que estaria de acordo com a sabedoria de Cristo dar bênçãos indizíveis como estas a homens que não têm coração para valorizá-las? Porque dar a um homem justificação e adoção é mais do que lhe dar todo este mundo visível: o sol, a lua, o firmamento, e a terra. Deveriam estas graças ser dadas a alguém que não liga para elas? Porque assim Deus perderia Seu propósito. Ele não obteria o amor, a honra nem a gratidão tencionada no Seu dom. É necessário, portanto, que a alma seja totalmente humilhada, a fim de que o perdão seja recebido como perdão, e a graça como graça, e não negligenciados indevidamente.
(3) Assim como a humilhação é necessária tanto para a honra de Cristo e de Sua graça, assim também ela é necessária para o nosso próprio benefício e consolação. A misericórdia não pode ser realmente nossa, se a humilhação não nos habilitar a isso. Estas bênçãos devem ser engolidas por um estômago vazio, e não tomadas na vaidade e impiedade. Um homem à beira da forca se regozijará com um perdão; mas um mero observador que se julgue inocente, não daria valor a isso, mas tomaria o perdão como uma acusação. Não há muita doçura no nome de um redentor para uma alma não humilhada. Ela não valoriza o Espírito. O Evangelho não é evangelho para ela. As boas novas de salvação não são tão alegres para tal pessoa quanto as boas novas de riquezas ou deleites mundanos. Assim como um estômago sadio é o que faz a refeição parecer agradável a nós, e assim como o cardápio rústico é mais agradável para o sadio do que as refeições suculentas ao doente, da mesma forma, se não formos esvaziados de nós mesmos, vis e perdidos nas nossas próprias prisões, e se a contrição não estimular os nossos apetites espirituais, o próprio Senhor e todos os milagres da Sua graça salvadora seriam aos nossos olhos coisa sem valor, e ouvir ou pensar sobre estas coisas apenas nos aborreceriam. Oh, que tesouro inestimável é Cristo para uma alma humilhada! Que vida nas Suas promessas! Que doçura em cada experiência da Sua graça, e que festa no Seu imensurável amor!
(4) Outro uso da humilhação, implícito no item anterior, é que ela é necessária para fazer com que o homem se submeta aos termos do pacto da graça. O homem natural se agarra aos prazeres da carne, e vive pelos sentidos e é apegado às coisas do presente. Ele não sabe como viver apegado às coisas invisíveis através de uma vida de fé. Esta é a nova vida que todos os que vivem em Cristo devem viver. Assim, portanto, Ele os convoca a abandonar tudo, a crucificar o mundo e a carne, e negar a si mesmos, se quiserem ser Seus discípulos. Mas quão relutante é o homem natural para renunciar a tudo e se entregar totalmente a Cristo! Mas quão ansioso ele é para se agarrar às coisas do presente, por falta de confiança nas promessas celestiais, tendo os céus, em última análise, apenas como uma reserva. É nestes termos que os hipócritas são religiosos, e é assim que enganam as suas almas. Mas quando o coração é verdadeiramente quebrantado, ele não mais permanecerá desse modo com relação a Cristo, mas se submeterá totalmente aos Seus termos. Não estabelecerá condições com Ele, mas aceitará com gratidão as Suas condições. Com Cristo, com graça, e com a esperança da glória, qualquer coisa lhe satisfaz a alma.
(5) Outro uso da humilhação é nos preparar para reter e progredir na graça quando nós a recebemos. O ditado diz: “O que é conseguido com facilidade, facilmente se perde”. Se Deus desse o perdão dos pecados ao que não é humilhado, quão cedo Ele seria desprezado! Quão facilmente tal pessoa daria ouvidos à tentação, e retornaria ao seu próprio vômito! Como nós dizemos: “A criança queimada teme o fogo”. Quando o pecado o golpear, e quebrar o seu coração, você o abominará enquanto viver. Quando a tentação vier, você se lembrará da sua dor aguda: “Não é isto aquilo que me custou tantos gemidos, me deixou no pó, e quase me condenou, e vou eu cometê-lo novamente? Foi tão difícil para eu ser restaurado por um milagre de misericórdia, vou eu agora correr novamente para a miséria da qual eu fui salvo? Não tive eu tristezas, temor e inquietação suficientes para que vá agora buscar mais disso, e renovar o meu transtorno?” Assim, a lembrança dos seus sofrimentos será um contínuo alerta para você. Um espírito contrito, que é esvaziado de si mesmo, e ao qual é ensinado o valor de Cristo e da misericórdia, não apenas se agarrará a eles, mas saberá como usá-los, com gratidão a Deus e benefício para si mesmo.
(6) Outro uso da humilhação é preparar a alma para se aproximar do próprio Deus, de quem ela se afastou. Assim como a nenhuma criatura é permitido se aproximar do Deus dos céus, a não ser que o faça com reverente humildade, assim também a nenhum pecador é permitido se aproximar Dele, a não ser que o faça em contrita humildade. Quem é que pode sair de tal estado de impiedade e miséria, e não trazer consigo o senso disso em seu coração? Não é permitido a um filho pródigo encontrar seu pai com tanta confiança e ousadia, como se ele nunca o tivesse abandonado, a não ser que diga: "Pai, pequei contra os céus e contra ti, e já não sou digno de ser chamado teu filho”[8]. Não é sem falta que uma alma culpada, ou que alguém que é resgatado do fogo, olhará para Deus com uma face soberba, mas com a cabeça baixa de vergonha e tristeza, batendo no peito e dizendo: “Ó Senhor, tem misericórdia de mim, pecador!”[9]; “Porque Deus resiste aos soberbos, contudo aos humildes concede a Sua graça”[10]; "O Senhor é excelso, contudo atenta para os humildes; os soberbos, Ele os conhece de longe”[11]; "Porque assim diz o Santo: Habito no alto e santo lugar, mas habito também com o contrito e abatido de espírito, para vivificar o espírito dos abatidos, e vivificar o coração dos contritos”[12]; “...mas o homem para quem olharei é este: o aflito e abatido de espírito, e que treme da minha palavra”[13]; "Perto está o Senhor dos que têm o coração quebrantado e salva os de espírito contrito”[14]; "Sacrifícios agradáveis a Deus são o espírito quebrantado; coração compungido e contrito; não o desprezarás, ó Deus”[15]. Não há retorno para Deus, a menos que não nos toleremos por causa das nossas abominações.
Quanto mais nos aproximamos de Deus, mais nós devemos nos detestar até o pó e cinzas. Ele não aceita um pecador em seus pecados; mas primeiro o lava e limpa. A conversão deve nos fazer humildes como crianças, as quais são ensináveis e não procuram por grandes coisas no mundo ou, de outro modo, não podem entrar no reino de Deus.
Estes são os usos e a necessidade da humilhação.
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