Airton Williams Artigos 02/11/2015
O estudo da Bíblia tem sofrido nos últimos anos um descaso,
até então, sem precedentes. Desde a Reforma Protestante que se tem dado atenção
em especial ao texto em si, procurando compreendê-lo a fim de melhor
explicá-lo. Foi abandonada, ali, a exegese do “quadruplo sentido das
Escrituras”, que tornava os resultados interpretativos muito subjetivos, e
passou-se a valorizar o “sensus litteralis”, ou sentido literal, que procurava
ouvir a mensagem objetiva do texto.
Desde então, nestes últimos quatro séculos, tem sido a
ênfase dos estudos bíblicos esta busca pelo sentido primário, aquele que o
autor do texto pretendia. Assim, a exegese avançou muito em seus estudos
textuais, históricos, literários e filológicos.
No entanto, nossa geração tem abandonado, paulatinamente,
estas ênfases e tem valorizado e praticado uma espécie de leitura mística das
Sagradas Escrituras. Tal leitura se pauta, acima de tudo, pela alegorização do
que lê, procurando encontrar sentidos “ocultos” e “profundos” para além do
próprio texto. Como resultado, se tem caído em explicações textuais estranhas,
e até mesmo bizarras, à intenção do autor.
Quando olhamos para a proposta da Reforma Protestante,
baseada no método Histórico-Gramatical, e vemos os esforços posteriores da
igreja reformada em se aperfeiçoar a exegese bíblica (e.g o Método
Histórico-Crítico), nos perguntamos, inevitavelmente: onde erramos? O que
aconteceu para que todo esforço por uma exegese fiel à mensagem do texto fosse
ignorada pela igreja cristã subseqüente à Reforma? Creio que alguns fatores
contribuíram fortemente para este afastamento de uma exegese responsável e
comprometida com a mensagem pretendida pelo escritor sagrado.
Por meio de minha vivência como pastor e professor de
exegese bíblica, tenho observado que o primeiro ponto de afastamento entre uma
exegese fiel e uma interpretação falsa das Escrituras se dá em função do avanço
acadêmico dos estudos exegéticos. Por mais paradoxal que isto pareça, com o
avanço dos estudos exegéticos a Bíblia foi se tornando um estranho nas mãos do
povo, a tal ponto que as ferramentas adquiridas para uma melhor compreensão da
mesma acabaram se tornando armas apontadas contra aqueles que se arriscavam a
interpretá-la. Assim, as pessoas começaram a se intimidar diante daquilo que
deveria ser uma ferramenta, e porque se tornou uma arma começaram a rejeitá-la.
Se não bastasse a exegese se tornar uma estranha no meio do
povo de Deus, os resultados propostos (principalmente pela exegese liberal das
Escrituras) passaram a assustar os crentes piedosos, que de forma genuína amam
ao Senhor. Assim, os resultados advindos da exegese passaram a intimidar os
leitores da Bíblia. No início, a intenção era que estes estudos abalizados
produzissem um profundamento da fé desvendando algumas das inúmeras
dificuldades interpretativas da Bíblia. Entretanto, o que se viu foram
resultados extremamente áridos. Literalmente, se caiu no perigo que o apóstolo
Paulo já havia advertido na Segunda Carta aos Coríntios, cap. 3.6: “O qual nos
habilitou para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do
espírito; porque a letra mata, mas o espírito vivifica”.
A exegese se apegou a tantos detalhes de somenos importância
que em vez de resolver os problemas existentes acabou criando mais. Com isso, a
fé deixou de ser aprofundada para ser questionada. Isto produziu nas igrejas um
vazio enorme, pois ao ouvirem algum estudioso bíblico ficavam com as perguntas que
lhes eram mais importante : E daí? O que isso tem a ver comigo, com a minha fé?
Como isso melhora meu relacionamento com Deus e o mundo à minha volta?
Como a exegese, com todas as suas ferramentas, não conseguiu
fazer conexão, durante muito tempo, entre seus resultados e as necessidades
espirituais dos seres humanos, as pessoas começaram a se distanciar daquilo que
antes havia sido celebrado com alegria, a leitura literal das Escrituras.
Assim, começamos a ver na geração presente o ressurgimento da leitura
alegórica, subjetiva, mas que fala ao coração. E à medida que a filosofia
pós-moderna avança, rejeitando todos os absolutos e relativizando tudo, o
estudo exegético passa a ser visto como algo desnecessário, pois quando muito,
produzirá algo que não nos diz respeito. Há até mesmo aqueles que veem nisso
pura laboração humana sem nenhuma presença de Deus, portanto, “carnal”.
Esta leitura mística acabou por jogar fora “da bacia a água
suja junto com a criança”. Todos os avanços que foram importantes para a
solidificação da fé Reformada, e a igreja Evangélica subseqüente, foram
simplesmente rejeitados. A concepção interpretativa da Bíblia nas igrejas
contemporânea não consegue ver nenhuma utilidade para o estudo textual,
histórico, literário e lingüístico. Tudo isto passa a ser considerado esforço
de pessoas “sem o Espírito Santo”, “frias” na sua relação com Deus, “amantes da
letra” que mata.
Por causa disso, temos visto uma série de doutrinas
heterodoxas surgirem no meio de nossas igrejas. De repente, começamos a ouvir
falar sobre crentes quebrando “maldições hereditárias” em suas vidas, possuídos
por espíritos malignos, fazendo “regressão espiritual” para curar traumas
passados, ministrando “perdão” a Deus, guerreando contra “espíritos
territoriais”, e tantos outros ensinos até então desconhecidos. E a cada dia
surgem tantas novidades “espirituais” que fica difícil, para a maioria dos
cristãos, distinguir o que é bíblico, de fato, daquilo que pretende ser
bíblico, mascarando falsos ensinamentos que pervertem a igreja de Cristo Jesus.
Se por um lado o estudo exegético corre o risco de gerar uma
fé árida, destituída de vida (podendo, inclusive, perder até mesmo a própria
fé), por outro lado, a leitura mística corre o risco de nos conduzir a uma fé
alienada da verdade revelada por Deus em suas Escrituras, gerando, por sua vez,
uma vida desconexa à vontade de Deus e, consequentemente, conduzir-nos ao
inferno.
Diante do exposto, e dos desafios que se nos impõe a
realidade apática de amor genuíno pela Palavra de Deus presenciada na maioria
esmagadora das igrejas reformadas e evangélicas atuais, precisamos reagir
atendendo a dois clamores bíblicos intratextuais que precisam ser conciliados
em nossa tarefa de extrair e expor com fidelidade as Sagradas Escrituras.
Primeiro, a Bíblia requer obreiros preparados que saibam
manejá-la bem (2Tm 2.15), pois este é um dos traços distintivos entre o líder
cristão fiel a Deus e o mercenário (2 Co 2.17), a fim de evitar distorções da
sua mensagem (2 Pe 3.15,16). É neste contexto que vemos a importância de um
estudo abalizado que procure ouvir a voz do Senhor tal como nos foi revelada, e
não segundo nosso entendimento em particular como pessoas ou grupo
denominacionalista. Não é incomum ouvirmos, após uma exposição bíblica que
contrarie interesses, expressões do tipo: “esta é a sua interpretação da
Bíblia; existem outras”. Tais falas refletem este espírito individualista de
verdade.
Esta Palavra, para ser bem manejada, requer conhecimentos
Históricos (pois o nosso Deus se fez conhecido na história da humanidade),
Literários (pois Deus não anulou o escritor sagrado quando o inspirou, razões
pelas quais encontramos diversos gêneros literários na Bíblia, os quais possuem
características distintivas), e Lingüísticos (pois Deus se fez ouvir através de
línguas que nos são estranhas ou diferentes, entretanto, usuais quando de sua
manifestação). Quando desprezamos estas coisas, desprezamos a voz de Deus, e
passamos a impor nossas vozes como a voz do Senhor.
Segundo, a Bíblia requer, também, que sua mensagem conduza o
pecador à salvação e ao crescimento por meio do ensino, repreensão, correção,
educação na justiça, a fim de que este seja perfeito e perfeitamente habilitado
para toda boa obra (2 Tm 3.14-17). Jesus nos disse: “Examinais as Escrituras,
porque julgais ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de
mim” (Jo 5.39), portanto, o estudo das Escrituras tem que nos conduzir a vida
eterna que está em Cristo.
Como dissemos no início, nossa geração tem desprezado o
estudo sério das Escrituras e favorecido uma leitura subjetiva, alienante e
mística da mesma. Com isso, tem se desviado, em muito, das verdades eternas
reveladas nas Sagradas Escrituras. Por isso, é mister, como ministros de Deus,
chamados para o santo ofício da pregação e ensino de sua Palavra, resgatarmos a
importância do estudo objetivo da Bíblia, desfazendo a insensatez daqueles que
a distorcem para a perdição de quem os ouvem e os seguem. Entretanto, para
isso, precisamos estar cientes de que a exegese deve ser encarada como
ferramenta para aprofundamento da fé daquele que a utiliza e daquele que recebe
os resultados do seu trabalho bíblico, e não como uma arma apontada contra a fé
de nossos irmãos em Cristo.
Aplicate-te totalmente ao texto, aplica-o totalmente a ti.
(Johann Albrecht Bengel)
Airton Williams
Bacharel em Teologia pelo Seminário Presbiteriano do Sul
(Campinas-SP) e pela Universidade Luterana do Brasil, ULBRA (Canoas-RS), Mestre
(Th.M) em Teologia Exegética pelo CPAJ-Mackenzie-SP e pós-graduado em Ciências
da Religião e em Língua Portuguesa, com concentração na Análise do Discurso,
autor dos livros “O Amor de Deus derramado em nossos corações” e “O mito e a
história na criação: uma análise literária de Gênesis 1.1-2.3”, ambos
publicados pela Fonte Editorial; Certeza de Salvação, Discernindo Dons
Espirituais e Não Andeis Ansiosos ambos publicados pela Editora Sebi. Há 18
anos trabalha como conselheiro bíblico.
Texto retirado do site: www.sebi.com.br
Texto retirado do site: www.sebi.com.br
Nenhum comentário:
Postar um comentário