Em 2009, comecei a pregar sobre a questão do sofrimento na
igreja que pastoreava, a Episcopal Carismática de Brasília. Onde meditando a
partir do livro de Jó. Todavia, para uma correta compreensão do livro e de sua
mensagem, é necessário desmistificar a figura de satan na história. Antes,
gostaria de deixar claro que creio na existência de Satanás e no seu poder
(ainda que limitado) para enganar e aprisionar as almas.
Assim, creio em possessão demoníaca, opressão maligna, e
todas as demais coisas que a fé cristã tem declarado, historicamente, sobre a
ação do diabo. Isto, porém, não me obriga a ver o diabo em todo lugar da Bíblia
e a interpretar o termo satan como Satanás quando, claramente, o texto não o
afirma.
A fim de evitar que você se perca nas meditações sobre o
sofrimento, decidi postar este artigo antes, para que a leitura, posterior,
flua melhor. Aqui, pretendo demonstrar porque satan, em Jó (e que fique bem
claro isto, no livro de Jó), não refere-se a Satanás, mas a um anjo da corte
celeste, cuja função é a execução punitiva da vontade do SENHOR e por à prova o
coração dos homens diante de Deus. Há 8 pontos para serem ponderados:
1. Do ponto de vista linguístico, temos um sério problema. O
termo satan, em hebraico, é precedido de um artigo, lendo-se, neste caso, hasatan.
Ora, quem conhece hebraico sabe que, neste caso, não se trata de nome próprio,
mas de um título que exige tradução, sendo esta a de “acusador”. Porque estamos
acostumados a ver o diabo como “acusador”, interpretamos a passagem,
imediatamente, como se referindo a ele. Acontece que no Antigo Testamento há um
anjo da corte celeste que recebe este título também por causa de sua função,
uma espécie de “promotor” da corte. Além disso, ele se faz presente no Êxodo
(na matança dos primogênitos), com Saul (atormentando sua vida), no censo de
Davi, e na corte, novamente, acusando o sacerdote Josué (Zacarias 3.1).
2. Em 1.6 se diz: “Num dia em que os filhos de Deus vieram
apresentar-se perante o SENHOR, veio também satan entre eles”. Observe que o
texto afirma, “entre eles”. Talvez isto não fique claro para você, mas em
hebraico a ideia refere-se a alguém daquele grupo. Ou seja, satan era contado
entre os filhos de Deus, expressão que se referia aos anjos dos céus (é
importante observar que filhos de Deus aqui em Jó não é a mesma coisa que
filhos de Deus em Gênesis 6.2, o qual diz respeito à descendência adâmica).
3. Do ponto de vista teológico, surge outra questão. Se
satan, em Jó, fosse Satanás, teríamos uma situação complicada, pois nesta
ocasião este já teria sido expulso dos céus por causa de sua rebelião. Em 2.1
este satan volta a se apresentar diante de Deus com os demais anjos. Se ele foi
expulso do céu, de onde vem esta liberdade para ficar entrando no céu sem
reprimenda de Deus? Muitos teólogos falam da “vontade permissiva de Deus”, mas
esta é uma dedução que não pode ser tirada do texto, pois o mesmo nada fala
desta vontade. A leitura natural do texto é que tal figura era um anjo da
corte, e não o inimigo de Deus e de nossas almas, o diabo.
4. Em 1.19 se fala de fenômenos da natureza que teriam
provocado a morte dos filhos e filhas de Jó. Neste sentido, toda a teologia
bíblica afirma que tal poder sobre a natureza somente Deus tem. É por isso que
os discípulos ficam assustados quando Jesus manda o vento e o mar acalmarem.
5. Do ponto de vista literário, o sofrimento de Jó, em
momento algum, é atribuído ao diabo, mas a Deus. Quando todos os males vêm
sobre Jó, sua mulher ataca sua integridade diante dos males e recebe como
resposta: “falas como qualquer doida; temos recebido o bem de Deus e não
receberíamos também o mal?” (2.10). Observe, Jó tem como certo que o mal,
sofrimento, que recebe vem de Deus, e não do diabo.
6. Os amigos de Jó em momento algum cogitam da possibilidade
daquele mal vir de Satanás, mas em todo momento entendem que procede de Deus
por causa de algum pecado de Jó.
7. A partir do capítulo 38 Deus entra em cena e assume para
si toda a situação manifestando sua soberania. Novamente, nenhuma acusação é
feita a Satanás.
8. No final do livro, cap. 42, a sorte de Jó é mudada, e por
isso, seus parentes vem festejar com ele. No v.11 se diz: “Então, vieram a ele
todos os seus irmãos, e todas as suas irmãs, e todos quanto dantes o
conheceram, e comeram dele, e o consolaram de todo o mal que o SENHOR lhe havia
enviado”. Observe, o mal, sofrimento, é atribuído a Deus, e em momento algum se
fala do diabo.
Não estou fazendo uma apologia do diabo, não. Apenas estou
fazendo uma análise literária e lexicográfica do sentido de satan, em Jó. E
neste sentido, o termo refere-se ao anjo da corte celeste.
Por que este entendimento é importante?
1. Porque desmistifica as elucubrações e devaneios dos
proponentes da “batalha espiritual” que fica atribuindo ao diabo mais poder do
que, de fato, ele tem.
2. Porque desfaz a teologia maniqueísta de que Deus e o
diabo estão num confronto por representarem forças iguais. O diabo, de si
mesmo, nada mais é do que um ser vencido pelo sangue do Cordeiro, o nosso
Senhor e Salvador Jesus.
3. Porque nos ajuda a entender a soberania e a natureza de
Deus em meio ao sofrimento. O nosso Senhor não é escravo da nossa vontade,
podendo dar-nos tanto o bem quanto o mal, do jeito que quiser e quando desejar,
visando o nosso crescimento.
Creio que a partir deste entendimento o livro de Jó se
mostra mais encantador, pois nos revela um Deus soberano, amado não pelo que dá
aos seus servos, mas pelo que é, Senhor e galardoador da vida. Com este
entendimento, convido-o a ler as mensagens que serão postadas nas próximas
semanas.
Airton Williams - Bacharel em Teologia pelo Seminário
Presbiteriano do Sul (Campinas-SP) e pela Universidade Luterana do Brasil,
ULBRA (Canoas-RS), Mestre (Th.M) em Teologia Exegética pelo CPAJ-Mackenzie-SP e
pós-graduado em Ciências da Religião e em Língua Portuguesa, com concentração
na Análise do Discurso, autor dos livros “O Amor de Deus derramado em nossos
corações” e “O mito e a história na criação: uma análise literária de Gênesis
1.1-2.3”, ambos publicados pela Fonte Editorial; Certeza de Salvação e
Discernindo Dons Espirituais ambos pela Sebi Editora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário